domingo, 25 de outubro de 2009

Angústia, o modo de ser privilegiado


A Angústia é um modo de ser do dasein que possibilita um ‘descortinar’, uma abertura, para que ele se conheça como um ente a partir do seu modo de ser, o que o diferenciará de outros entes. É se colocar de frente com o seu verdadeiro “modo de ser”. É um momento de compreensão em que o dasein se percebe no mundo e entende que ele só é no mundo e o mundo só é para ele. É o contato consigo mesmo. É o seu conhecimento de dentro para fora. É se relacionar inteiramente com esse mundo, sem artifícios. É saborear um vazio que pode ser repleto de revelações. É permitir constantemente o desvelamento.


No entanto, ao não fazer – ou fugir – dessa conexão real com o mundo, por meio de ‘ferramentas’, o dasein foge de si mesmo. O mundo tecnicista, que ilusoriamente controla o tempo --  ou mesmo o ‘coisifica’ -- , e apresenta ao dasein artifícios que tentam demonstrar a ele que ele pode e deve controlar o seu destino, de acordo com a moralidade e legalidade, só o afasta da sua total compreensão. Só o afasta da revelação do seu poder-ser. Com isso, o dasein não se projeta no mundo. O dasein foge de si, por meio de necessidades ilusórias que ele acredita ser imprescindíveis para sua existência nesse mundo apresentado a ele. E passa a atuar em um mundo irreal. Ou seja, o dasein se coloca fora de si.
Assim, o dasein se fecha e não permite que o mundo real se revele a ele e que ele se revele ao mundo. Essa privação nada mais é do que a fuga de si. O dasein, ao se fechar, foge de algo que ele mesmo busca constantemente: o seu verdadeiro modo de ser.
Mas se o dasein busca constantemente o seu modo de ser verdadeiro, porque, quando tem um cenário que pode lhe proporcionar esse conhecimento – a angústia – foge dele?
Porque há um nexo ontológico entre angústia e temor. Há um parentesco fenomenológico entre os dois. O grau de parentesco é tão próximo que, muitas vezes, chamamos de angústia o que é temor e um fenômeno de temor quando apresenta características de angústia. Porém, embora essa ligação seja ainda obscura, não é difícil de compreendê-la, porque o revelar-se causa medo. O revelar-se assusta. Portanto, o dasein retira-se de, desvia-se de.
Chama-se de fuga de si mesmo o processo do dasein de cair no mundo das ocupações, no mundo tecnicista, que transforma tudo em impessoal. No entanto, nem todo retirar-se de, ou desviar-se de, é necessariamente uma fuga. Caráter de fuga é quando o retirar-se de usa como desencadeador o temor daquilo que desencadeia esse temor, ou seja, o ameaçador. Na decadência, o ameaçador é o si-mesmo.
A verdadeira angústia se angustia com o mundo como tal. É com o indeterminado. Não encontramos na angústia o ameaçador, diferentemente do processo de ansiedade e depressão, porque ele não está em lugar nenhum. Um bom exemplo dessa conceituação pode ser observado na personagem Laura Brown, vivida por Julianne Moore, no filme “As Horas”. A dona de casa Laura vive um processo de angústia evidente que não consegue encontrar o seu por que. Em alguns momentos, a personagem tenta abraçar algumas ocupações, mas sempre volta ao processo de angústia. Ao acreditar que ‘os motivos’ de sua angústia é a família e a vida que leva ao lado dos seus familiares e vizinhos, a personagem foge desse universo. No entanto, anos depois, ao encontrar a personagem Clarissa Vaughn, interpretada por Maryl Streep, percebe-se --  e a própria personagem identifica -- , que a angústia é algo inerente ao ser humano e caminha com ele, independentemente da cotidianidade vivida. É um processo permanente.
Mas é preciso compreender que a angústia, embora não consiga identificar o porquê e o seu ameaçador, ou seja, o causador desse ‘vazio’, desse ‘buraco’, não é um processo negativo e, sim, é um processo de abertura. Por isso deveria ser abraçado e vivido em sua plenitude. Isso porque, a ausência do nada e de sua insignificância não quer dizer ‘ausência de mundo’, mas revela a insignificância do ente intramundano. Revela que significante é o próprio mundo. É a possibilidade de tudo que o mundo pode oferecer. É ligação direta, sem artifícios, do dasein com esse mundo. A angústia se angustia com o mundo como tal e, consequentemente, com o próprio ser-no-mundo.
Ao saborear a angústia, o dasein permite-se poder-se-no-mundo. Distancia-se do processo de compreensão, com base na decadência, quando procura se compreender a partir do mundo e na interpretação pública. Essa compreensão não revela o verdadeiro modo de ser do dasein, mas os modos de ser que o distancia de si-mesmo e da sua relação com o mundo e com os outros.
O mundo tecnicista tem contribuído para cada vez mais para o dasein se distanciar do modo de ser da angústia, sendo essa manifestação cada vez mais rara, ou confundida com outras sensações, como depressão e ansiedade. Estamos cada vez mais longe de aprender a usar a angústia como algo que nos remeta ao nosso ser-no-mundo e transformá-la em algo benéfico ao nosso existir. A fuga na cotidianidade e nas suas ocupações, recheadas de tecnologia que aprisionam o dasein cada vez mais para fora de si, levam a vida inautêntica, afastando o ser humano da sua autenticidade. 

http://www.youtube.com/watch?v=dAPthrZbJdE

(escrito em 18/10/2009)

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