domingo, 17 de junho de 2012

Há os que sabem viver e os que pensam que vivem

Obra de Salvador Dalí
Ler Clarice Lispector sempre me fascina. Lembrei-me que há algum tempo estava ensaiando para começar a ler "Água Vida", obra que comprei quando estava pensando em associar a autora com os filósofos Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. E inicie essa aventura de conhecer "as entranhas" de Lispector nesse belo livro, em uma tarde fria de domingo.



"Então escrever é o modo de quem tem a palavra
como isca: a palavra pescando o que não é palavra.
Quando essa não palavra - a entrelinha - morde a isca ,
alguma coisa se e
screveu. Uma vez que se pescou a entrelinha,
poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora.
Mas aí cessa a analogia: a não palavra,
ao morder a isca, incorporou-a.
O que salva então é escrever distraidamente"
A leitura me fez lembrar também de uma apresentação que assisti no ano passado, por volta de agosto ou setembro, na ocasião do lançamento de um livro, no qual um amigo tinha um texto publicado. O livro era parte do projeto de um professor que abriu o lançamento dizendo que havia inventado uma técnica que ele definiu como uma escrita na qual o autor coloca as palavras ou pensamentos conforme vêm à sua mente.
Quanta pretensão!
E as obras de Clarice o que são? Será que essas pessoas que participaram desse projeto -- que acho nobre -- nunca leram Lispector? Ou mesmo alguns aforismos de Nietzsche? Enfim, mas deixemos o professor pra lá e voltemos à obra "Água Viva".
Eu recomendei o belo texto para alguns amigos que sei que apreciam a leitura, mas é preciso alertar que é necessário estar preparado para essa obra. Clarice "vomita" os pensamentos, as palavras e, muitas vezes, os menos preparados não vão compreender.
"Água Viva" é uma obra em movimento. Um constante movimento. Várias são as passagens que me tocaram e me levaram a avaliar o "meu existir" e, novamente, pensar na temporalidade -- o que venho fazendo há alguns anos, desde que iniciei meus estudos em filosofia.
O que é o tempo?
O que fazemos dele?
Como o entendemos?
"À duração da minha existência dou uma
significação oculta que me ultrapassa. Sou um
ser concomitante: reúno em mim o tempo passado,
o presente e o futuro, o tempo que lateja
no tique-taque dos relógios"
A única conclusão que "moldei" nesses anos todos após ler vários filósofos e pensadores que falam sobre o tempo é que a modernidade não sabe lidar com esse "mistério"; ou melhor, transformaram-no em nosso grande inimigo.
O tempo deveria ser o nosso grande aliado; um cenário para que possamos viver e nos conhecer melhor. Fico cada vez mais impressionada como a grande maioria das pessoas lida com o tempo, insistindo em dividi-lo em passado, presente e futuro. Esse é um grande problema que a gramática nos deixou.
Mas o que é esse tempo mensurável?
Ele existe mesmo?
Conheço pessoas que ficam presas "ao passado", porque sempre acham que lá as "coisas" eram melhores. Então, lembro-me que "nesse passado" essas mesmas pessoas falavam de um "passado-mais-passado". E assim por diante.
Ou então, há aqueles que vivem no futuro, ou para o futuro. Trabalham sem parar, projetam sem parar, nunca estão satisfeitas, pensam demais. E se esquecem que o caminho pode ser mais interessante do que a chegada.
Em "Água Viva", Clarice fala do "instante", do "já", do "agora".
Por que há quem não consegue viver o agora, com vontade, com sabedoria?
Por que há quem sempre pensa que está perdendo "tempo"?
Por que há quem não consegue viver o que realmente deseja?
Todos os compromissos são marcados e determinados em um "espaço de tempo" e, dessa forma, ninguém aproveita o "já", o "agora", porque está tentando controlar "esse tempo". O "tempo do instante já".
Uma das passagens que mais me chamou a atenção na obra, foi a descrição de um sonho da personagem: :

Então sonhei uma coisa que vou tentar reproduzir. Trata-se de um filme que eu assistia. Tinha um homem que imitava artista de cinema. E tudo o que esse homem fazia era por sua vez imitado por outros e por outros. Qualquer gesto. E havia a propaganda de uma bebida chamada Zerbino. O homem pegava a garrafa de Zerbino e levava-a à boca. Então todos pegavam uma garrafa de Zerbino e levavam-na à boca. No meio o homem que imitava artista de cinema dizia: este é um filme de propaganda de Zerbino e Zerbino na verdade não presta. Mas não era o final. O homem retomava a bebida e bebia. E assim faziam todos: era fatal. Zerbino era uma instituição mais forte do que o homem. (Clarice Lispector. Água Viva)
Assim foi nos ensinado a viver: repetindo gestos, atitudes, padrões, mesmo que saibamos que não "prestam para as nossas vidas". Porque todo mundo faz!
Deixamos de viver histórias, momentos, alegrias plenas, por conta de "Zerbinos" que são divulgados por aí por diferentes fontes.
Pois eu, espero ter a força e a sabedoria da personagem de Clarice Lispector que logo no início da obra diz: "Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada"

E você o que tem feito do "seu agora"?




Nenhum comentário: