sábado, 26 de maio de 2012

Amor romântico deve morrer para nascer o amor-verdade


"Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode,
com o tempo, permanecer objeto do amor,
porque só ele é capaz de simbolizar
para o outro a vida, ser sentido como tal.
(Lou-Salomé)
Li outro dia uma Nota em um perfil do Facebook, na qual o autor comentava o texto do Varella "Quando a relação não serve". Confesso não conhecer o texto do Varella, pois, embora o ache fantástico como médico --- trabalho com medicina e sei do seu valor como influenciador na conscientização de vários problemas de saúde — não consigo enxergá-lo como um “terapeuta de casais”.

O autoconhecimento foi – e ainda é – o meu maior objetivo de vida. Fui pra filosofia e descobri muitas diferentes verdades; fui para psicanálise e estudei os grandes mestres que revolucionaram conceitos de modos de vida; deitei-me no divã para amarrar o meu conhecimento de fora com o meu autoconhecimento.

Sempre acreditei que a vida deve ter um sentido e esse, em minha opinião, é o seu mais precioso sentido: se tornar um ser-em-si; buscar o seu verdadeiro eu, quem realmente somos: nosso modo de ser.  

Outra citação nesse mesmo perfil do Facebook, no qual o autor do mesmo cita  “Clarice Lipspector”, uma representante da filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre em nosso país: "Não procure alguém que te complete. Complete-se a si mesmo e procure alguém que te transborde". E o que significa essa simples frase de Clarice? Significa tudo aquilo contrário à Nota que o autor do Facebook defendeu sobre "Quando a relação não serve".Transbordar, na figura de Clarice, não é olhar para o mesmo lado, é mostrar ao outro um mundo diferente. Uma nova realidade. Já dizia o grande Freud: "Se dois indivíduos estão sempre de acordo em tudo, posso assegurar que um dos dois pensa por ambos". 


 






Resumindo: não se trata de uma relação de amor, mas de prisão, de manipulação.A sociedade nos impõe uma série de regras que vamos engolindo sem ao menos discuti-las, contestá-las; e quando fazemos isso, sempre vem os “ditadores de regras” – que estão presos aos conceitos que lhes foram impostos - nos dizer que estamos errados. Então, como seres que fomos criados a obedecer, a ser dóceis (leia sobre docilidade na obra Vigiar e Punir, de Foucault), abaixamos nossas cabeças, colocamos o nosso rabinho entre as pernas e viramos o robô que essa sociedade tanto quer para que continue assim: de um lado quem domina, do outro quem é dominado, e essa relação de poder é transferida também para as relações afetivas, infelizmente.

As relações nos moldes que conhecemos estão cada vez mais desgastadas, repletas de um jogo de culpas e cobranças. Ficamos buscando o ideal que foi preconizado e que não passa de fonte de decepção e frustração, tornando e colocando o indivíduo sempre como vítima do outro, quando na realidade somos vítimas de nós mesmos. 

Nós somos os nossos maiores inimigos e perseguidores. Flávio Gikovate resgatou pensamentos de autores antigos para tentar “matar essa história bestial do amor romântico” e disse em uma entrevista na ocasião do lançamento do seu livro “Uma história de amor... com final feliz”:  

“Temos de entender que não somos metade. Ninguém precisa de outra parte para se completar. Essa situação de incompletude tem de ser resolvida internamente, sem repassar ao outro a responsabilidade por esse vazio. Há muitos solteiros felizes. A maioria leva uma vida serena e sem conflitos. Quando sentem uma sensação de desamparo - aquele 'vazio no estômago' por estarem sozinhos -, resolvem a questão sem ajuda. Mantêm-se ocupados, cultivam bons amigos, leem um bom livro, vão ao cinema. Com um pouco de paciência e treino, driblam a solidão e se dedicam às tarefas que mais gostam. Os solteiros que não estão bem são, geralmente, os que ainda sonham com um amor romântico, ainda possuem a ideia de que uma pessoa precisa de outra para se completar. A solidão é boa, ficar sozinho não é vergonhoso. Ao contrário, dá dignidade à pessoa. As boas relações afetivas são parecidas com 'o ficar sozinho', ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem. Viver sozinho é um bom estágio para dar início a uma relação madura. Pode ser que a pessoa goste tanto dessa condição que decida não investir mais em relacionamentos”.

Sei que é difícil compreender o que Gikovate diz, pois a nossa sociedade prega sonhos como “cara-metade”, “almas gêmeas”, “escritos nas estrelas”  e outros mitos que destroem a individualidade e o amadurecimento verdadeiro do ser-como-ser. A felicidade está dentro de nós e não precisa que ninguém venha ligar um botão. Ela é nata. Tão nata que um dos poetas aclamados por várias gerações entendeu isso e cantou: “Solidão a dois, de dia faz calor, depois faz frio. Você diz já foi e eu concordo contigo, você sai de perto, eu penso em suicídio, mas no fundo, eu nem ligo” (Cazuza). 

Na realidade, para viver o amor-verdade (assim que eu o chamo) não é preciso olhar para o mesmo lado, dividir o mesmo gosto por livros, cinema e ideias de como lidar com situações. É preciso respeitar o outro. Acima de tudo, é preciso enxergar o outro e não essa insanidade de se enxergar no outro. Isso é outra coisa, é narcisismo. “Lembrem-se: narciso acha feio o que não é espelho”.

Lou-Salomé, uma das mais importantes pensadoras e que conquistou o respeito e o amor de grandes homens, como Nietzsche, Freud e Rilke, disse em uma de suas obras (infelizmente, tão difíceis de serem achadas por aqui):

"Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar um em parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro."

Eis aqui o real significado do ‘TRANSBORDAR’ de Clarice Lispector.


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